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Sobre quem eu não quero me tornar e a carioquice que não me pertence

27 maio 2016


Eu queria poder te mostrar o Rio de Janeiro com os meus olhos. Para você que já faz parte daqui, que não está acostumado a questionar tudo o que acontece à sua volta, nem a absorver cada detalhe como se fosse a revelação do segredo de uma mágica. Queria que você conseguisse reparar cada coisinha como eu reparo. Essas coisinhas que passam batidas no seu dia-a-dia, sabe? Que nada mais são do que a única realidade que você conhece e a única forma que existe de viver.

Cada segundo que passo aqui eu sou estapeada na cara: estapeada com verdades sobre a história do Brasil, estapeada com tanta arte nua e crua em todos os poros da cidade, com as verdades que me são expostas sobre a minha própria história - o descobrimento cada vez mais real da bolha que eu estava inserida em Brasília...

A pobreza me olha nos olhos aqui. A dependência química, o sofrimento, a marginalização. A morte. Mas eu sempre tenho a opção de virar o rosto pro outro lado.

Ontem à noite eu fui pra Lapa. L.A.P.A... Aquele bairro maravilhoso onde se encontram todas as cores, credos, gêneros e gostos. Aquele lugar que me ensina mil coisas todas as vezes que eu me aproximo e que ainda assim continua a ter um milhão de outras coisas a continuar ensinando até mesmo depois que eu me afasto. Mas ontem a lição foi um pouco mais difícil de digerir. 

Enquanto eu andava entre suas ruas à caminho da Glória, um mendigo dormia na calçada ao lado. Isso faz tanta parte do processo de carioquice, né? Se acostumar com as pessoas dormindo na calçada. Basta andar alguns quarteirões por ali pra perder a conta de quantos corpos habitam aquelas ruas de noite. E o de ontem teria sido apenas mais um, se, por acaso, eu não tivesse reparado no seu rosto. Por acaso mesmo, já que ninguém olha no rosto dos mendigos... A gente sempre vira a cara pro outro lado quando passa perto.

O mendigo de ontem vomitava enquanto dormia. Desculpa se as descrições começarem a ser um pouco forte, mas não tem como aliviar a cena: ele vomitava, deitado com o peito pra cima, e respirava o próprio vômito. Ou se afogava no próprio vômito. O mendigo de ontem provavelmente acordou morto essa manhã. E a gente sabia que ele estava morrendo quando passou por ele. Mas a gente não fez nada. Não paramos, não o ajudamos, nem chamamos ninguém pra ajudar. Porque era só mais uma noite na Glória. Só mais uma noite no Rio de Janeiro. 

Havia um grupo de prostitutas à frente, outros passantes fazendo o mesmo caminho que nós na calçada e todos devem ter visto o mendigo enquanto ele morria. "Já passou, Chany...", falou meu amigo quando percebeu que eu tinha ficado mal. Mas não passou. Eu sei que provavelmente ele morreria de qualquer jeito. Mesmos e eu ligasse para uma ambulância, dificilmente ela viria ao auxílio de um morador de rua, né? A vida deles não tem valor algum.

Mas eu não sou carioca. E eu não quero absorver essa parte da experiência. Não quero achar normal. Não quero seguir meu caminho olhando para o outro lado e ignorando alguém que morre na minha frente. Ele não era um cara morrendo na favela ao lado. Não era alguém que "eu sei que existe, mas não estou vendo". Eu vi. Ele estava lá. E eu continuei andando.

Acho que eu preciso de um tempo desses tapas.

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8 comments:

  1. "E eu continuei andando."
    Infelizmente não é algo raro no mundo. Aqui onde moro não é muito comum, mas é região metropolitana de BH, que me pareceu bastante com o que você descreveu.
    Passamos direto por tanta coisa. Mas tem coisa que as vezes nem nos damos conta.
    Mas realmente não pode ser visto como correto só pq é comum.
    Acho que é aceitando muita coisa, que acabamos passando em cima de nós mesmos.

    Mas no momento acho que infelizmente eu continuo andando...

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Vanessa. Paraibana, leonina, amante dos animais e de homens com cabelos compridos. Isso é basicamente tudo que você precisa saber sobre mim, o resto você descobre nas páginas do blog. ♥

 
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